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sábado, 15 de junho de 2013

Sagrado Masculino: O Sacrifício de Odin e a Consciência Coletiva - Por Luciaurea Kaha


Falar sobre Odin é falar sobre o Sagrado Masculino, o Sagrado Feminino, e sua abrangência, o Sagrado na humanidade. Sua existência marca um estalo na evolução da consciência humana. O deus nórdico da estratégia e da guerra existe além dos portões imaginários que seu mito representa. Odin não era apenas o chefe político em horas difíceis, mas também o agente responsável pela sabedoria universal. Falar de Odin é falar sobre suas palavras e palavra é energia. Odin cria através dos sons, ele é o encantador. Sua fama de poeta se espalhou pelo Velho Mundo, deixando seus rastros no presente através dasEddas.

Quem estuda os mitos sabe como eles influenciam a humanidade desde o seu nascimento. Grandes professores como Joseph Campbell e Carl Gustav Jung deixaram seu recado em milhões de palavras.

No presente artigo nós vamos estudar o mito de Odin. A intenção não é sacrificar a visão espiritual pagã em detrimento da análise, o que nos faria obter um resultado parcial da mesma. Vamos, no entanto, ampliar a densidade espiritual e arquetípica, procurando obter maior nitidez das simbologias presentes no mito, que sem dúvida, vale a pena ser aprofundado.


Odin pendurado na Yggdrasil, Árvore do Mundo


Suspenso na Árvore assolada pelo vento,
Durante nove dias e nove noites fiquei.
Trespassado por uma lança, uma oferenda para Odin,
Eu mesmo me sacrificando e oferecendo-me a mim.
Amarrado e suspenso estive naquela Árvore,
Cujas raízes têm uma origem desconhecida aos homens.
Ninguém me deu pão para comer,
Ninguém me deu algo para beber.
Ao espreitar as profundezas abaixo de mim,
agarrei avidamente as runas,
E apossei-me delas, dando um grito feroz.
Depois, caí da Árvore, perdendo os sentidos.
(…)
Bem-estar eu alcancei com as runas, Sabedoria também.
Amadureci e alegrei-me com meu crescimento.
Cada palavra conduziu-me a novas palavras,
Cada ato proporcionou-me novos atos e escolhas.”

Havamal: 138-139


Odin é uma figura mitológica bastante interessante. Sua influência arquetípica tem motivado o comportamento de milhares de pessoas no mundo inteiro, através de uma necessidade andarilha, de uma busca pela verdade pessoal, de uma persistência constante no espírito dos que ousam. Odin representa aquele que atendeu ao seu propósito de alma. Todos buscam alguma coisa. As viagens, a criação da internet, a produção literária da poesia, o aumento dos investimentos no desenvolvimento humano, a busca pelo autoconhecimento e as considerações sobre a sabedoria interior levantadas pelos grandes comunicadores da espiritualidade, a movimentação monetária, a evolução tecnológica nas comunicações e a diplomacia são, por exemplo, algumas das manifestações que estão sob sua influência e evidenciam sua presença no inconsciente coletivo, o que nos leva a perceber que o mito, que Odin, opera por vias invisíveis. Mas muito mais do que um personagem mitológico, Odin é uma realidade psicológica. Ele é real e pertence ao mundo dos deuses e ao reino arquetípico dos símbolos sagrados da humanidade.

Odin inicia a “jornada do deus” muito antes de seu sacrifício na Yggdrasil. Ele e seus irmãos Vili e Vé se aventuram a criar o mundo partindo do corpo morto do gigante do gelo Ymir (tema para futura análise). Mas foi, com certeza, na Yggdrasil, que Odin tomou consciência do quanto era divino.

Seu sacrifício na árvore do freixo, onde ficou auto-imolado por nove dias e nove noites a fim de obter os segredos das runas e dos nove mundos, vem nos trazer dois aspectos de uma experiência profunda, que acontecem simultaneamente e estão relacionadas ao arquétipo da anima:
Um presente no simbolismo da Iniciação pela morte do velho Odin para o nascimento do novo Odin: “Trespassado por uma lança, uma oferenda para Odin, eu mesmo me sacrificando e oferecendo-me a mim”;
E o outro presente no simbolismo da Árvore do Mundo, a Axis-Mundo: ”Amarrado e suspenso estive naquela Árvore, cujas raízes tem uma origem desconhecida aos homens”.

Esta experiência representa uma realidade arquetípica.

No primeiro aspecto, Odin passa por uma transformação psicológica profunda evidenciada no eixo ego-self, a morte do velho ego e o renascimento de uma nova identidade conectada com o Self, o Si Mesmo. Nesta auto-iniciação, ele sabia que sua busca o levaria ao seu estado divino: emprestando uma ideia de Mirella Faur, essa passagem revela que “o xamã Odin teve a visão do deus Odin”. A ressurreição encontra sua correspondência no mito da perda e do reencontro no processo de individuação. Odin sabia que para alcançar um objetivo importante, era necessário abrir mão de algo de valor, encontrando sua expressão na sábia premissa “um presente sempre requer outro presente”.
Modelo de mundo, arcaico, concebido pelos antigos escandinavos. São os 9 mundos de Yggdrasil, 9 realidades paralelas.

Aqui, a morte psicológica aparece relacionada com a sombra e a anima: uma mãe simbólica que abraça e guarda o filho e lhe oferece a morte para fortalecer, renovar e provocar o amadurecimento de seu espírito.

No segundo aspecto da mesma experiência iniciática, Odin diz estar amarrado e suspenso na Árvore do Mundo, sendo esta, uma representante do próprio Self, e por isso ela é o sustentáculo desse mundo, porque só o Self é capaz de amparar toda a estrutura, como mostra o desenho. A Árvore é uma imagem coletiva que no mito “tem raízes com origem desconhecida aos homens”, ou seja, ela é uma estrutura muito arcaica, podendo representar a anima também. Ela também recebe a conotação mítica de “guardiã do tesouro”, pois abaixo dela estão escondidas as runas, poeticamente traduzidas por Faur como os “mistérios sussurrados”. Neste caso, podemos concluir que a árvore faz o papel da ponte entre Odin e o Self.

É então que através da terra (outro símbolo da anima), representando aqui o útero arquetípico da Grande Mãe, o local das gestações, trazendo consigo toda a sabedoria ctônica, que Odin avista as runas pela primeira vez e se apossa delas: “Ao espreitar as profundezas abaixo de mim, agarrei avidamente as runas, e apossei-me delas, dando um grito feroz. Depois, caí da Árvore, perdendo os sentidos.” Odin avista as runas através da fenda visionária da anima. Aqui deixa claro que Odin foi obrigado a olhar para dentro, aceitando o chamado dos escolhidos em seu propósito de alma, adentrando o mundo do inconsciente para acessar os símbolos sagrados que lhe trariam de volta à vida. Ninguém acessa o Self se não integrar a sombra: um arquétipo que soma as qualidades do que escondemos e recalcamos na consciência. O mito mostra que ele teria que adentrar no mundo da sombra para ser gerado e nascido novamente. Curiosamente os nove dias e nove noites em que Odin fica entre a consciência e a inconsciência e submetido a uma imensa dor física, equivalem a um período de recolhimento da libido, um tempo de gestação onde seus novos potenciais começam a emergir e tomar forma no útero das intenções do inconsciente. Ele perde temporariamente o contato com o mundo racional, seu sistema nervoso se enfraquece, e só então é merecedor de se tornar o profeta dos deuses, superando a descida ao inconsciente. Era necessário passar pela escuridão para descobrir a luz da consciência representada pelas runas. Quando ele vê as runas ele enxerga então o poder do Self distribuído nas consciências arquetípicas das formas e grita.


Runas você irá encontrar, hábeis sinais
Grandiosos e poderosos sinais
Citadas pelos grandes deuses
Transmitidas pelo profeta dos deuses
E ensinadas pelos sábios xamãs.
Runas, antigos e mágicos sinais,
Você sabe como gravá-las?
Como pintá-las?
Como tê-las?
Como orar com elas?
Como entoá-las?
Como usá-las?
Como oferecê-las?
Como enviá-las?
É melhor não pedir, para não ter que pagar depois,
Pois um presente, sempre requer uma retribuição,
Mais vale não enviá-las, do que precisar oferecer demais.

Havamál

Seu grito representa a manifestação do Verbo (Valhalladur) e neste momento, uma nova linguagem, depois de integrada à consciência, passa a ser a chave-mestra que guiaria a realidade humana. Neste ponto do mito, as runas representam aspectos de uma Consciência Maior, aspectos da Consciência Rúnica, que Odin acabara de integrar em sua própria consciência. Odin emerge totalmente individuado.

Odin é o marco psíquico de uma mudança na consciência e na comunicação do ser humano. Esse marco é representado pelo período de quase-morte pelo qual passou. Pendurado de cabeça para baixo – o que o aproximava mais das influências ancestrais femininas da terra, a anima - o sangue flui para a cabeça e somam-se os sintomas da falta de alimento, líquido e sono, em extrema privação sensorial e muito enfraquecido. Odin então tem a experiência da viagem astral: ele se liberta de seu corpo e viaja pelos nove mundos, livre dos limites de tempo e espaço, para obter em seguida o conhecimento do Universo sob a forma das runas, exatamente na nona noite em que ele morre e ressuscita. Os escandinavos concebiam nove realidades paralelas e planos de consciência distintos e aqui, o simbolismo do nove é evidente: os nove meses da gestação, o final de um ciclo e início de outro, nove realidades psicológicas, as nove nobres virtudes.

Odin tem grande relevância na consciência humana. Para o homem moderno, Odin representa a iniciação nos mistérios do Norte, o rito de passagem para encontrar o sábio xamã e velho guerreiro dentro de si mesmo. Nossa sociedade excluiu os ritos de passagem, deixando à margem as crianças sem o devido preparo para a maturação psicológica. Os meninos que crescem sem atravessar a ponte para a verdadeira vida adulta, continuam afetados pelo complexo materno, “eternamente” vinculados no relacionamento com suas mães; permanecem pueris, sem terem a experiência de uma anima erotizadora capaz de impulsioná-los em seus propósitos de alma. O mito de Odin é para o homem moderno, um guia para um encontro profundo com os mistérios masculinos.

Para a mulher, Odin é o representante do seu animus, um animus mais antigo e ancestral que a conduz amorosamente pelo caminho da integridade. Odin vem trazer às mulheres um mundo de possibilidades intuitivas como resposta às suas indagações e o norte profissional. Como patriarca pode representar o pai psicológico, o chefe ou o velho conselheiro. Odin é também, na psique feminina, o sábio que conduz sua jornada ou o amante que a erotiza simbolicamente.

Para a humanidade, Odin é uma representação suprema da persistência e do sacrifício, o sagrado ofício, o dar para receber, que o ser humano deve empenhar em sua jornada para o Si Mesmo. Odin é o sábio andarilho, sempre impelido a movimentar-se para onde sua alma o chama. Odin também é a consciência amorosa do Self. Seu mito nos mostra como a psique se organiza a partir da desestruturação de uma realidade imediata, para aprofundá-la na inconsciência com o recolhimento da libido, e fazê-la emergir repleta de energia e consciência, como uma nova realidade no mito do renascimento.

“Bem-estar eu alcancei com as runas, Sabedoria também.
Amadureci e alegrei-me com meu crescimento.
Cada palavra conduziu-me a novas palavras,
Cada ato proporcionou-me novos atos e escolhas.”



imagens retiradas da net

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