Já tinha entrado nas portas da cidade quando percebeu que algo havia acontecido. As pessoas reuniam-se em grupinhos, murmurando ou até vozeando com vivacidade. Mais preocupado ficou quando viu Shabnan vir ao seu encontro, rodeada de alguns escravos.
- Adolfo foi capturado e vai ser apresentado num leilão de escravos. – Comunicou Shabnan a meia voz e antes que Ivanoel perguntasse o porquê, ela informou que o rumor da sua condição feminina e masculina se espalhara e como escravo ele valia uma fortuna. Sobressaltado, correu para a tenda gigante no centro da cidade, onde decorriam os leilões de escravos.
Naquele momento ainda licitavam Adolfo e as ofertas eram absurdamente altas. Ivanoel jamais poderia acompanhar ou travar tais paradas.
Tentou dissuadir os mercadores mas estes afastavam-no rudemente. Num ponto estratégico viu o Sultão do reino vizinho e o seu grande séquito, ricamente trajados. Tentou chegar-lhe e pedir-lhe clemência mas foi barrado e até expulso da tenda.
Adolfo acabou por ser comprado pelo dito sultão.
O moreno cavaleiro regressou a casa de Navid e este e Shabnan esperavam-no.
- Nada podeis contra o Sultão, caro amigo Ivanoel. – Garantiu Navid – Mas talvez Shabnan vos possa ajudar.
Esta retirou-se por minutos para os seus aposentos e surgiu com duas moedas de ouro pequenas.
- Levai estas moedas e colocai uma na boca – Informou a formosíssima mulher – Ficareis invisível e podereis entrar no palácio do Sultão e procurar Adolfo.
Ivanoel assim fez, cavalgou até ao reino vizinho e facilmente entrou no palácio do Sultão sorrateiramente. Procurou-o nas masmorras sem sucesso. Percorreu algumas partes do palácio sem o encontrar. Então lembrou-se. Procurou na ala das mulheres e acabou por descobrir Aegle ricamente trajada, sobre um leito. Parecia calma mas com vestígios de lágrimas no seu rosto. O cavaleiro acercou-se dos véus de musselina que circundavam a alcova e tirou a moeda da boca. Os olhos de Aegle brilharam ao ver Ivanoel. Este instou-a ao silêncio e deu-lhe a moeda explicando-lhe tudo num sussurro. Meia hora depois estavam fora do palácio. Chegaram às portas da cidade e à casa de Navid antes de amanhecer.
Shabnan aguardava-os ansiosa. Após as congratulações, ela perguntou pela Pedra e Ivanoel mostrou-a contando o que dissera o Guardião da Pedra. Aegle tomou-a nas mãos e afagou-a tristemente. Inesperadamente viu-se uma luz cintilante e surgiu um ancião muito semelhante ao Guardião que Ivanoel vira. O ancião sorriu bondosamente para todos e olhando para Ivanoel dirigiu-se-lhe com indulgência:
- Meu filho, vejo que já experienciaste mais aventuras após vos terdes despedido de mim. A Pedra da Felicidade é activada pelo Amor, como sabeis. Chegou a hora de escolherdes com o coração. Chegou a hora do resgate desta Graciosa Dama. Caso Aegle se torne mulher, o vosso amigo Adolfo desaparecerá para sempre mas Aegle terá uma oportunidade de ser feliz.
Ivanoel hesitou, balbuciando:
- Adoro Adolfo…Meu Amigo... Companheiro de Armas como nunca tive… Dói-me perdê-lo… Não posso escolher…O meu sentimento vai para Shabnan… no entanto… não desejo prejudicar esta dama que já passou por muito…
-Pois, eu escolho ficar para sempre como Adolfo! – Interrompeu Aegle com intensidade. – A vida sorri-me mais como cavaleiro e como vivo só, é-me mais vantajoso ficar assim… E assim também não perdereis o vosso amigo…
- Nobre Dama, não cometais tal desvario! – Exclamou Ivanoel protestando alvoroçado mas sem no entanto conseguir dissuadir Aegle.- Não o façais por minha causa!
- Não, Cavaleiro! Faço-o por minha!
Então o ancião sorriu de forma indulgente e proferiu em tom firme:
- Que se faça consoante a vossa vontade, minha filha!
E naquele momento Aegle ficou transformada em Adolfo para sempre.
Ivanoel pedira Shabnan em casamento e os preparativos já tinham arrancado. Adolfo mostrava-se seu amigo fiel e, fora algumas sombras de tristeza no olhar, parecia aceitar o destino com resignação e coragem. Afastara-se discretamente do convívio com Shabnan e no presente momento as mulheres mal se falavam ou olhavam.
Ivanoel às vezes mirava-o disfarçadamente, sondando o estado de espírito do franzino cavaleiro, porém também observando a sua figura frágil mas masculina. Preocupava-se com o amigo e ao mesmo tempo sentia-se estranho pois a existência de Adolfo de facto parecia ilusória e a pessoa que ele encarava era uma mulher na realidade.
- Porque me olhais? Acaso não vos pareço autêntico? – Adolfo parecia adivinhar os pensamentos do amigo.
- Isto é demasiado confuso para mim. Sempre adorei Adolfo, mas agora… Sempre que vos olho sei que está aí uma mulher… e tudo fica confuso.
- Sou vosso Amigo. – Frisou Adolfo- O resto perde-se nas brumas do passado.
Ivanoel suspirou e abanou a cabeça como que para afastar dúvidas. – Muito bem, Cavaleiro Adolfo, bebamos então como dois bons comparsas.
E assim tentaram manter um clima ameno até ao dia do casamento. As bodas celebraram-se com grande fausto. Tanto Shabnan como Ivanoel trajaram maravilhosas vestimentas de brocado e seda. Grandes festejos tiveram lugar, onde foram servidas opíparas iguarias.
Adolfo olhava distraidamente para as bailarinas quase desnudas que o tentavam seduzir. Sentia-se um pouco ébrio. No entanto o roçagar das musselinas na sua cintura fê-lo despertar. Era tarde e aquele era o sinal que lhe mostrava que estava na hora de se retirar.
Adolfo não tinha reparado que Shabnan e Ivanoel se tinham retirado há algum tempo. Fizera por não reparar nisso. Sentia o seu coração seco, onde a dor já nem sequer ressoava.
De repente ouviu um rumor vindo dos aposentos nupciais. Escapuliu-se para trás de uma gelosia, escutando.
Meia hora antes os recém-casados haviam-se retirado para os seus novos aposentos. Namoriscavam em cima da alcova entre risos e sussurros e Ivanoel brincava com as jóias da sua nova esposa, dispersando-as pelo corpo de Shabnan. Esta, a certa altura, pediu-lhe para usar a Pedra da Felicidade. O cavaleiro fitou-a um pouco surpreso mas acedeu. Levantou-se e abeirou-se dum cofrezinho diminuto, todo cravejado a pedras preciosas. Aegle após a transformação não quisera usar mais a Pedra e então o moreno Cavaleiro guardara-a. Mal este abrira-o, Shabnan atirou-lhe com água à cara e proferiu:
- Incauto! Deixai a vossa forma original para vos converterdes numa ave!
E no lugar de Ivanoel surgiu uma ave. Adolfo escutara e observara tudo horrorizado. Shabnan prendeu Ivanoel numa gaiola de ferro e ausentou-se. O cavaleiro franzino saiu do seu esconderijo e tentou abrir a gaiola mas foi em vão. Provavelmente era uma gaiola mágica. Olhou para o cofrezinho mas a Pedra já não se encontrava mais lá. E agora o que fazia? Angustiado foi para os seus aposentos pensativo. Enquanto pensava, foi rodando a moeda de ouro que Ivanoel lhe dera para o salvar do palácio do Sultão. Uma nuvem formou-se e surgiu um ser dessa nuvem.
- Sou um génio. Estou ao vosso dispor.
- Ohhh, um génio?... - Admirou-se Adolfo. – Gostava de vos pedir se podeis transformar Ivanoel de novo em Homem?
- Poderei libertá-lo da gaiola mágica mas para o transformar só através da ação da mão humana. No entanto vos direi como fazê-lo. Ide ao poço que já conheceis e descei pondo a moeda na boca e mergulhai. Não precisais de recear perecer pois isso não vos acontecerá. Ide até ao fundo do poço onde vereis uma argola de ferro. Puxai-a e a tampa se abrirá. Descei pelas escadas que encontrardes e vereis um jardim, procurai uma pereira e colhei uma. Fazei o caminho de volta sem vos deterdes com nada. Fugi do pássaro de asas de prata caso este apareça pois é o seu poder que prende o vosso amigo cavaleiro. Se vos atacar, dai-lhe uma espiga de milho que encontrardes no jardim.
Adolfo assim fez. Foi até ao poço e seguiu as instruções do Génio sem dificuldade. No início fez-lhe impressão mergulhar mas verificou não haver problema em respirar dentro de água. Também se surpreendeu após abrir a tampa de pedra no fundo do poço, de nenhuma água verter para o subterrâneo. Desceu as escadas para o jardim e rapidamente encontrou a pereira. Já fazia o caminho de volta quando surgiu uma enorme ave de asas de prata. A ave fazia voos rasantes e o Cavaleiro teve que abrigar-se debaixo duma árvore. Procurou a espiga de milho e com alguma dificuldade encontrou-a e atirou-a para longe. A ave voou como uma flecha para onde estava a espiga e desatou a comer o milho, distraindo-se. Assim Adolfo conseguiu fazer o caminho de volta.
Chegou à casa de Navid, mas viu a sua oportunidade de entrar nos aposentos onde estava a gaiola, goradas pela presença de Shabnan.
Aliás, durante dias Adolfo não conseguiu entrar nos aposentos do casal pois Shabnan fechava a porta à chave. Adolfo estava a desesperar.
Entretanto era forçado a conviver com ela, diariamente.
Após Shabnan ter transformado Ivanoel numa ave, o seu comportamento mudara visivelmente. Estava mais expansiva e inclusivamente, tentava aproximar-se de Adolfo. Mais, insinuava-se a ele. Adolfo recuava sempre e num momento que Shabnan quase o beijara, Adolfo exclamou:
- Porque me tentais? Acaso não vos lembrais da minha verdadeira natureza?
- Eu olho para vós e só vejo um homem. Um homem que ainda não descobriu que é homem.
Adolfo sentiu-se constrangido e retirou-se.
Resistia em ter intimidades com qualquer mulher mas desde a transformação sentia-se diferente.
Até que uma tarde Shabnan ausentou-se de casa e Adolfo esgueirou-se para os aposentos do casal. O seu coração apertou-se quando viu que a gaiola não estava lá.
-Procurais algo? – A voz de Shabnan fez-se ouvir inesperadamente, sobressaltando Adolfo.
- Es… esperava… Por vós… - Balbuciou ele dizendo a primeira coisa que lhe ocorrera.
- Ah, o doce Adolfo finalmente decidiu assumir a sua virilidade! – Replicou ela sorrindo sedutoramente. Adolfo pestanejou corando.
- É… - respondeu ele por fim, deixando que Shabnan o beijasse. Deixou-se ir na esperança de adormecer qualquer desconfiança de Shabnan e de descobrir o paradeiro de Ivanoel.
A noite já caíra quando Adolfo pediu a Shabnan um chá. Esta ausentou-se diligente e nesse instante Adolfo convocou o génio da moeda.
- Encontrai rapidamente a gaiola e levai a pera pois encontro-me impossibilitado de sair daqui e desconheço o paradeiro de Ivanoel. – Pediu o cavaleiro ao génio que acedeu prontamente. Shabnan entrou com o chá e Adolfo, num momento de distracção da formosa oriental, deitou água na chávena dela. Não tardou que a bela mulher se sentisse mole e sem forças caindo num sono profundo. Adolfo procurou a Pedra. Naquele momento entrou Ivanoel.
- Que fazeis no quarto com ela? – Exclamou atónito Ivanoel olhando para Adolfo semi nu. Após abraçar o amigo, Adolfo explicou com vivacidade os acontecimentos, continuando a procurar a Pedra.
- Mas vós… - Tentou intervir Ivanoel, sendo interrompido pelo companheiro que lhe estendeu a Pedra com os olhos brilhantes.
- Ei-la! – E friccionou-a como da outra vez. A luz apareceu e o guardião da Pedra fez-se presente com o seu sorriso bondoso.
- Meus filhos, fico contente por me convocarem. É uma alegria estar convosco novamente, depois de tantas vivências que tivestes em tão pouco tempo. Bravo Ivanoel, sois testemunha da afeição de Adolfo por vós e a vida mostrou-vos que as aparências enganam e o que conta é a voz do coração. Doce Adolfo, tudo fizestes por amor a Ivanoel, porém pareceis ter dado um passo em direcção à vossa masculinidade. Amor incondicional decerto, mas pareceis ter chegado a uma encruzilhada. Que dizem então os vossos corações?
- Eu amo-vos. – Confessou Ivanoel de lágrimas nos olhos. – Sejais Aegle ou Adolfo, são tudo formas de Amor. Pesa-me perder um para ficar com o outro mas gostava de ser feliz com Aegle.
- Eu… - Adolfo hesitava e ao mesmo tempo sentia a emoção a apertar-lhe a garganta. – Neste momento já não sei de nada…
Ivanoel chorou ao ouvir as palavras do amigo e abraçou-o, enquanto o Guardião proferia em tom sábio: - Deixai que a Pedra decifre os vossos corações.
Os dois choravam e as lágrimas banhavam a Pedra da Felicidade. Então, gradualmente, Ivanoel viu Adolfo transformar-se em Aegle. Louco de alegria pegou nela e beijou-a. Ela correspondeu-lhe mas depois fitou-o.
- Não sentireis a falta de Adolfo?
- Sim, mas é convosco que me sinto completo. – Declarou Ivanoel.
- Quem sabe um dia?... - Sorriu o Guardião despedindo-se do casal apaixonado.
Epílogo
- Adolfo! Adolfo! Onde estás? – A voz de Ivanoel soava ecoando nos verdes campos da sua terra natal. Uma criança de seis anos surgiu correndo.
- Estou aqui, papá. Olha, trouxe umas flores para a mamã! – E estendeu um ramo de flores variadas. Ivanoel riu-se.
- Gostas tanto de flores que não sei como vais virar cavaleiro quando cresceres.
- Uma coisa não impede a outra. – A voz de Aegle fez-se ouvir, enquanto pegava na criança ao colo e recebia as flores que lhe eram destinadas. – A felicidade reside em sermos o que somos… com amor.
Ivanoel sorriu e beijou-a diante do sorriso feliz de Adolfo.
Fim
Autoria de Florbela de Castro
2013
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