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sexta-feira, 25 de maio de 2012

Conto: "O Pintor de Quadros" - Por Florbela de Castro




Nos tempos da Renascença, onde florescia a arte, vivia na Rússia um jovem de origem modesta, que almejava ser pintor. O seu nome era Alexander.

Alexander era magro, de estatura média, pele quase cor de baunilha pálido, olhos amendoados e negros como os seus cabelos ondulados, usava bigode fino e pera.

Apesar de bonito e em idade casadoira, Alexander não arranjava pretendentes, pois interiormente era uma pessoa um pouco fechada e abrupta.
Alexander tinha um sonho: tornar-se um pintor famoso. Porém não tinha posses para frequentar uma academia, nem conhecimentos influentes para se tornar pupilo de algum mestre famoso. Os seus pais também reprovavam essas atividades e apesar do filho ser detentor de um dom nato não o incentivavam a pintar. Ao início Alexander pintava e desenhava às escondidas, mas após seus pais descobrirem, foi instado a abandonar os seus sonhos.

No presente momento, Alexander ficara órfão e como era filho único, sem família, conjecturou voltar a pintar. E como faria para arranjar dinheiro para os materiais? Cedo arquitectou uma forma. Foi vendendo o recheio da casa até quase a esvaziar. A seguir foi pondo mãos à obra, noite e dia, e produziu um quadro de natureza morta. Estava maravilhoso; Alexander admirou até altas horas e por fim adormeceu sonhando em ganhar um bom dinheiro com este.

No dia seguinte acordou bem cedo para ir para a feira levando a sua obra debaixo do braço. A feira estava apinhada, com banca de doces, tecidos, hortaliças, pratas, tamancos e uma profusão de pessoas.

Enquanto se dirigia ao local para vender o seu quadro, Alexander sentia fome e já sonhava deliciado com o deglutir de uma nêspera sumarenta e de um pão com queijo. Ao caminhar tropeçou em várias frutas e até ouviu uma peça de vidro fragmentar-se em mil pedaços "Estes mercadores se não têm cuidado só verão prejuízos no final do diz", pensou ele. Finalmente alguém lhe perguntou o que ele levava ali. Tratava-se de um casal de uma certa idade e de aspecto abastado. Talvez fosse algum meirinho.

-Este quadro retrata uma maravilhosa taça de cristal adornada de belos frutos - anunciou Alexander, virando a tela para o casal de meia idade.

Os seus rostos ficaram sem expressão ao fitar aquela obra enquanto o jovem pintor ostentava um sorriso triunfante. à medida que o abastado cliente transfigurava a sua expressão curiosa numa de ira, o sorriso de Alexander desmaiava no seu rosto.

-Patife! - vociferou o velho - Tomais-me por idiota?? Como ousas querer enganar-me!?

-Enganá-lo, senhor?... - o jovem artista estava perplexo - Se a minha tela não vos agrada... - foi interrompido pelos sorrisos e gargalhadas de sarcasmo de uns e os impropérios iracundos de outros.

Só então o pintor olhou para a sua tela e o que viu fê-lo empalidecer de espanto. Nada havia ns mesma a não ser um fundo castanho escuro que ele tão primorosamente pintara. Mas...como era aquilo possível??...

Alexander estava desnorteado, contudo teve de fugir lestamente para não ser atacado pela multidão. Derrotado e esfomeado, chegou a casa sem compreender o sucedido. Pensou, pensou e por fim adormeceu angustiado, pois dormir já era meio sustento. Ao acordar de manhã uma interrogação tomou forma na sua mente: A taça que se partira e as frutas pelas quais tropeçara na feira seriam as do quadro?

Assomou-lhe então uma ideia à cabeça e sem mais delongas pôs-se a esboçar um quadro onde o tema era uma lauta refeição. Terminou-o já noite alta e extenuado e enfraquecido adormeceu. Acordou de manhãzinha com uma mesa farta e deliciosos aromas. Sim, mesa que ele nem sequer tinha mas que havia desenhado, adornada de uma vistosa toalha vermelha. Vitorioso Alexander atirou-se à bela refeição esfaimado.

A partir dali, ele passou a desenhar as suas refeições diárias e voltou a mobilar a sua casa. Tentou ser discreto com a vizinhança, fazendo-os acreditar que vendia os seus quadros numa vila longínqua. Passaram-se longos meses. O dom tomara a cabeça de Alexander. Este afastara-se da aldeia e, entrando na floresta, havia desenhado um belo palacete com um luxuoso palacete. Depois, criados, belas carruagens e cavalos, magnificas roupas.

Haviam-se passado três anos. Apesar da criadagem, sentia-se só. Lembrou-se então de desenhar uma mulher.



Três dias gastou a desenhar, pintar e aprimorar uma bela mulher. No final Alexander mirou o quadro satisfeito, sentindo-se um Deus, pois brevemente teria a sua Deusa nos seus braços. Aliás, passou o resto do dia admirando a sua obra e a bela mulher; até fez as suas refeições nos seus próprios aposentos para não desfitar os olhos da pintura. Bem sabia que no dia seguinte ela ganharia vida.

Tentou deitar cedo, mas custou-lhe a adormecer. Finalmente mal abriu os olhos, saltou da cama e e deparou-se com a formosa mulher. Esta era de estatura média, delgada, de olhos claros esverdeados, cabelo escuro e ondulado, de beleza delicada mas selvagem; tão genuína era a sua essência que não parecia ter sido inventada por um pintor mas sim diretamente criada por fonte divina.



Alexander permaneceu de olhos esbugalhados a contemplar a linda mulher e imediatamente se viu apaixonado por ela.

A partir daquele dia o homem tornou-se um delicado companheiro da bela Nathalie, de seu nome; presenteava-a com os mais belos vestidos, tecidos, toucados, jóias e perfumes. Brindava-a com finas iguarias, exóticas frutas, deliciosas sobremesas. Conversava e passeava com ela à noite...na realidade, Alexander monologava pois a mulher permanecia sem emitir qualquer som desde que surgira.

Mas o homem, louco de paixão, nem se parecia importar com isso. Por ela pintou mais retratos, casas, jardins, o mundo...Contudo a jovem permanecia calada e reservada, suspirando de vez em quando.

Alexander bem via que a sua paixão não era correspondida e que nada fazia feliz a sua Nathalie. Isso também o deixava infeliz. Porém a paixão dominava-o e só o fazia teimar na sua conquista. Febrilmente pintava presentes magníficos, manjares deliciosos, luxos ostensivos continuamente, mas nada disso trazia o amor de Nathalie…

Desesperado, um dia, interpelou a linda moça do que fazer para a conquistar.

Esta, por fim, respondeu-lhe em voz clara e límpida.

-Amarei aquele que tiver uma alma cristalina e um coração de ouro.

Esta resposta deixou Alexander confuso. Uma alma cristalina?... Um coração de ouro?... Como pintar isso?...

Passou semanas errático e cismático, acabrunhado por não saber como pintar aquilo e torná-lo seu.

Até que um dia ouviu falar numa velha feiticeira que vivia na orla da floresta e resolveu visitá-la apresentando-lhe todo o seu caso.

Esta deu uma gargalhada e disse que a fama de Alexander precedia-o. Pausadamente falou que tinha a solução para ele. A três aldeias dali vivia um rapaz de coração de ouro e alma cristalina e que Alexander só precisava ir buscá-lo e assinar um pacto com ela, lacrado com o seu sangue. Excitado mas ainda confuso, o pintor tartamudeou como iria reconhecer o rapaz e como iria conseguir transferir o que ele queria para ele mesmo.


A velha estendeu-lhe uma pulseira de diamante afirmando que esta brilharia intensamente mal ele se acercasse do rapaz e que à vista desta, o pobre rapaz perderia a reação dando espaço para o pintor lhe colocar a pulseira, fazendo segui-lo fielmente.

-Quanto ao resto, tudo acontecerá naturalmente – respondeu a velha misteriosamente e já atarefada com a elaboração escrita do pacto.

Alexander não imaginava o quão malogrado se tornava naquele momento.



Intrigado ele pôs-se a caminho. Sentia-se, a um tempo, aliviado, esperançado e oprimido. Mas porquê oprimido? Nem ele próprio sabia explicar o que a sua voz interior lhe tentava avisar.


Chegado à aldeia, facilmente conseguiu capturar o maravilhoso rapaz e com ele rumou para o seu palácio. O jovem, de coração de ouro e alma cristalina, possuía uma rara beleza. Pele diáfana, cabelos loiros de reflexos dourados, feições suaves e doces e os olhos eram castanhos, tão claros e límpidos que quase se assemelhavam a ouro em fusão. Era alto, mas não corpulento.


Julgava Alexander que de alguma forma miraculosa os predicados do precioso rapaz passariam para si. Sentia-se poderoso e regozijava-se interiormente com o desfecho.


Contudo o que o pintor não esperava era que Nathalie, quando esta se acercou do rapaz de coração de ouro e alma cristalina, encantara-se por ele. Este parecia corresponder-lhe, tratando-a com simplicidade e dedicação. A cada dia que passava, iam-se tornando mais unidos.


Ferido pelo ciúme e raiva, Alexander congeminava em separá-los e acabou por seguir um impulso desastroso. Decidiu apunhalar vilmente o rapaz, para assim arrancar-lhe o coração e a alma e torna-los definitivamente seus. Não podia suportar aquela afronta!


Um dia avistou-se com o rapaz nos jardins e puxou de uma adaga para tentar desferir um golpe cobarde e fatal. Nesse momento o céu escureceu, trovejou, o palácio desmoronou-se, os criados desapareceram e Nathalie tombou fulminada. Ferido, o rapaz de ouro e alma cristalina bradou:


-Porque fizeste isso. Acaso julgas que uma boa alma se compra ou se rouba?

Logo a seguir fez-se ouvir um riso estridente da feiticeira.


-Incauto! Perdeste tudo e perdeste-te a ti. E porquê? Por um rabo de saia? O amor é para os tolos. – E rindo a bandeiras despregadas, a voz desapareceu.


Aterrado, Alexander balbuciou:

-Mas tu disseste que tudo aconteceria naturalmente.


Contudo foi o rapaz de coração de ouro e alma cristalina que lhe respondeu.

-Sim, e aconteceu. Ao encontrar Nathalie despertei nela o sentido do amor verdadeiro. Nathalie foi criada por ti mas não tinha um coração para amar. No entanto ela é uma parte de ti mas ao encontrar-me aconteceria a fusão com a alma cristalina e o coração de ouro. Agora que atentaste contra a vida o poder de criar já não é mais teu. – E dito isto o rapaz afastou-se, partindo para a floresta.


Alvoraçado e incrédulo, Alexander procurou tintas e pincéis nos escombros, tentando pintar. Porém, após o raiar de um novo dia, nada se transformou.


Agora estava sem dom, sem amor, sem tecto, sem bens, se casa, sem nada.


O jovem pintor vagueou chorando e soluçando dias a fio as suas mágoas e penas. Só queria morrer e após caminhar exaustivamente, deixou-se cair no solo, onde mergulhou num estado febril. Prdeu a noção do tempo.


Assim permaneceu, definhando. Não procurou ajuda, mas também não o podia pois encontrava-se demasiado fraco.


Ali perto ouvia-se rumorejar das águas de um rio, as folhas das árvores dançavam ao sabor do vento produzindo um som fresco; alguns pássaros trinavam nas redondezas.


Por entre os seus olhos enevoados, Alexander julgou vislumbrar umuma silhueta masculina; assemelhava-se a o rapaz de ouro e alma cristalina, contudo parecia rodeá-lo uma auréola luminosa. O rapaz ajudou-o dedicadamente naquele momento de fraqueza e debilidade. Permaneceu o tempo necessário e para além da sua convalescença. Por fim o pintor já se encontrava restabelecido. Durante aquele período de tempo pouco haviam falado, mas a atmosfera entre os dois sempre fora leve e calmante. Porém Alexander pensara muito na sua vida e resolvera partir em peregrinação. Como que lhe lendo os pensamentos, o rapaz perguntou:


- Acaso desejas fugir de ti mesmo?


O jovem de cabelos negros olhou-o perplexo por uns momentos.


-Preciso pensar, encontrar-me. Porque estou vivo?... Qual o meu lugar aqui?... Porque nasci? Eu só queria…


As palavras morreram-lhe na garganta. Engoliu em seco.


- E Natalie?... – perguntou o rapaz suavemente.


- Natahalie está perdida para sempre! – Os seus olhos negros encheram-se de lágrimas - Ela já não está mais entre nós e a culpa é minha! Nathalie está perdida para mim. Não a mereço. Mas também não consigo viver com esta dor. De ora em diante viverei só para expiar as minhas culpas e longe daqui.


E virando-se lentamente para o companheiro, acrescentou:- Apesar de eu não merecer, sei que és especial e podes ajudar-me a concretizar esta minha decisão…


- Alimentares mágoas e culpas não te vai trazer paz interior, nem é o melhor caminho. Contudo respeito a tua decisão. A partir de hoje correrás mundo levando contigo o coração de ouro. Nathalie não está perdida e o Poder Maior conceder-lhe-á a Alma Cristalina e voltará a viver. Nada mais te posso dizer sobre ela. A não ser que consigas fazer a Verdadeira Reunião.

Tal como previsto o ex-pintor correu mundo. Durante anos percorreu países onde a neve era uma constante e outros onde o estio se perlongava; palmilhou montes, montanhas e vales, planícies e planaltos; atravessou rios, lagos, mares e oceanos; conheceu bosques, florestas e desertos.


Ao longo dos tempos conheceu também pessoas de todos os géneros e raças e culturas, sempre sentindo o seu coração de ouro agir como um magneto nesses encontros. Ao início isto parecera-lhe estranho pois ele sempre fora adverso à convivência, mas com o passar dos anos e das aprendizagens, sentia-se unificado com este.


Havendo decorrido 20 anos, Alexander estabelecera-se há cinco anos no Oriente, num Oásis com uma povoação considerável, alojada. Tornara-se vendedor de tecidos e trajava-se como os demais. Apesar do seu ofício, muitas pessoas vinham pedir-lhe conselhos e ouvi-lo falar. A sua fama espalhou-se por terras longínquas. Forasteiros vinham ouvi-lo falar e pedir orientações.


Um dia ouviu-se falar de uma peregrina que teria o dom de curar as pessoas.


Essa peregrina acabou por ocupar lugar como sacerdotisa num tempo na periferia do Oásis. Porém a mesma não era bem vista pela comunidade que murmurava entre si se ela seria realmente uma curandeira ou na verdade uma maga. Dizia-se que os pacientes que a visitavam voltavam fascinados, principalmente os homens.



Isto causou burburinho entre o povo, especialmente nas mulheres e mães de família. Os falatórios rápido subiram de tom. Alexander tentava acalmar o povo que se reunia em ajuntamentos no mercado local. Não conhecia a dita mulher contudo sentia-se no dever de trazer a harmonia e o bom senso à população. Porém desta vez ninguém deu-lhe ouvidos. As desavenças multiplicavam-se em tom crescente até que num dia em que o sol brilhava numa intensidade chamejante, o tumulto aconteceu. Homens viraram-se contra mulheres, famílias discutiam, amigos defrontavam-se, até o caos se instalar definitivamente no mercado. Alexander assistia a tudo estarrecido Os confrontos tornaram-se de tal forma incontroláveis que fizeram deflagrar um incêndio que se propagou por todo o Oásis!


Em pânico centenas de pessoas fugiam para o deserto, tentando salvar haveres e outros conterrâneos. O terror gerado pela violência das labaredas, causara um efeito de choque, levando todos os habitantes à atitude de união. Alexander certificou-se que todos saiam a salvo.


De repente lembrou-se da peregrina. Estaria ainda no Templo já tomado pelas chamas? Correu para lá, cruzando-se com o último grupo de pessoas em fuga. Um dos membros desse grupo, um mendigo, ao vê-lo dirigir-se para o Templo exclamou:

-Vais salvar a mulher de Alma Cristalina? Então tens de correr como o vento. – Alexander esbugalhou os olhos ao som destas palavras.

Seria possível?...


No interior do Tempol, já deserto, encontrou Nathalie desanimada, pegou nela e correu lesto dali. Já fora do alcance das labaredas estacou esbaforido, ansiando que ela acordasse, insuflando ar para os seus pulmões e ela aos poucos voltou a si.


Felizes pelo reencontro conduziram o povo pelo deserto onde a certa altura depararam-se com o rapaz de coração de ouro e alma cristalina.

-Sou um Anjo. – Revelou este – E venho conduzir-vos para a Nova Terra.


Todos exultaram e enquanto o anjo estendeu uma tela, pincéis e uma palete a Alexander, dizendo a este para pintar.


Então o pintor criou uma belíssima cidade como um arco-íris, cuja entrada era uma gruta. Tudo apareceu imediatamente ali no Deserto.


Extasiados e felizes todos festejaram, enquanto Alexander e Nathalie agradeciam ao anjo. Este presenteou-os com uma bola de luz e sorrindo disse:

-Agora sim, está efectuada a fusão do coração de ouro e da alma cristalina porque vocês se reencontraram e estão prontos para se unirem como casal nesta cidade paradisíaca. – E dito isto voou para longe enquanto o casal lhe acenava de mãos dadas.


FIM

Autoria de Florbela de Castro

2011

Autoria das imagens: Heise Jin Yao e Yang Fan respectivamente. 


http://artlira.blogspot.pt/2011/11/o-pintor-de-quadros-2-e-ultima-parte.html 

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